IA na decifração do manuscrito grego de Herculano: resgate digital de um papiro carbonizado do Vesúvio

Neste artigo, analisamos como a inteligência artificial (IA) auxiliou a decifração inicial de um papiro carbonizado de Herculano, enterrado há dois milênios sob as cinzas do Monte Vesúvio. Acompanhando a reportagem de Victor Mair (Upenn.edu), discutimos técnicas de restauração digital, aprendizagem de máquina aplicada à paleografia, implicações para a filologia clássica e para o patrimônio cultural. Palavras-chave: IA, inteligência artificial, decifração de papiro, Herculano, Vesúvio, manuscrito grego, restauro digital, patrimônio cultural.

Introdução: o contexto do resgate científico

A descoberta de fragmentos de rolos carbonizados em Herculano — e o esforço contínuo para torná-los legíveis — ocupam um lugar central nas interseções entre arqueologia, filologia, ciência da computação e conservação do patrimônio cultural. Conforme relatado por Victor Mair, do Language Log da University of Pennsylvania, “A year and a half ago, we learned of the initial AI-assisted decipherment of a charred scroll that had been buried for two millennia under the volcanic ashes of Mt. Vesuvius (eruption 79AD) in the city of Herculaneum: ‘AI (and human ingenuity) to the rescue’…” (MAIR, 2025). Esse episódio marca não apenas um avanço técnico, mas um ponto de inflexão metodológico na recuperação de textos antigos.

Neste artigo, dirigido a leitores profissionais e especializados, examinamos em detalhes os métodos de inteligência artificial empregados, os desafios técnicos e epigráficos, as implicações historiográficas e as responsabilidades éticas e de preservação associadas ao uso de IA na decifração de manuscritos. O objetivo é oferecer uma análise crítica e técnica, ancorada na reportagem de Mair (2025) e contextualizada com práticas consolidadas em conservação e pesquisa digital.

Herculano e os rolos carbonizados: histórico e importância

Herculano, assim como Pompeia, foi soterrada pela erupção do Monte Vesúvio em 79 d.C. Entre os achados mais enigmáticos estão coleções de rolos, muitos fortemente carbonizados, recuperados da chamada Villa dei Papiri. Esses rolos conservam fragmentos textuais raros, potencialmente contendo obras filosóficas, literárias e científicas do mundo greco-romano. A natureza dos materiais — papirus convertido em um estado near-carbonizado — torna a leitura por métodos convencionais praticamente impossível sem danificar os objetos.

A importância desses manuscritos é múltipla: além de possíveis textos únicos, eles fornecem evidências sobre circulação de ideias, hábitos de leitura e colecionismo na Antiguidade. O redescobrimento de uma obra atribuída a um filósofo grego ampliaria nosso entendimento da transmissão textual e das redes intelectuais do período.

Tecnologias tradicionais versus abordagens digitais

Historicamente, as tentativas de ler rolos carbonizados envolveram métodos mecânicos de desenrolamento, além de técnicas de imagem convencionais (fotografia infravermelha, radiografia). Tais procedimentos frequentemente acarretavam risco de destruição física. O avanço técnico do século XXI introduziu abordagens não invasivas: tomografia computadorizada (CT), espectroscopia e processamento de imagens digitais. A integração de inteligência artificial e de algoritmos avançados de visão computacional acrescentou uma nova dimensão ao arsenal metodológico.

Segundo Mair (2025), a decifração inicial assistida por IA representa um marco porque combina capacidades de reconhecimento de padrões com heurísticas filológicas, permitindo inferir trajetórias de traços gráficos que a leitura humana isolada não alcançaria. A IA não substitui o olhar experiente do paleógrafo, mas amplia a sensibilidade a sinais mínimos presentes nas imagens digitais.

Técnicas de IA empregadas na decifração

A aplicação de inteligência artificial aos rolos carbonizados envolve, genericamente, as seguintes etapas: obtenção de imagens de alta resolução (por tomografia ou fotografia multiespectral), pré-processamento para realce de contraste, segmentação das áreas de interesse, reconstrução tridimensional (quando apropriado) e reconhecimento ótico de caracteres ou padrões grafológicos com modelos de aprendizagem profunda.

Modelos de deep learning, como redes convolucionais (CNNs), são treinados para distinguir sinais de tinta (ou variações de densidade) do ruído provocado pela carbonização e pela estrutura fibrosa do papiro. Técnicas de aprendizado por transferência são frequentemente utilizadas, aproveitando modelos pré-treinados em conjuntos de caracteres antigos ou em escrita manual moderna adaptada para paleografia. Além disso, métodos generativos podem auxiliar na “completação” de traços parcialmente preservados, propondo hipóteses de leitura que devem ser validadas por especialistas.

É importante destacar que, conforme observado por Mair (2025), a decifração bem-sucedida resulta da combinação entre inteligência artificial e engenhosidade humana: a IA propõe leituras prováveis que são então revisadas, corrigidas e interpretadas por filólogos e conservadores.

Desafios técnicos e epistemológicos

A leitura de um papiro carbonizado por IA enfrenta problemas técnicos significativos:

– Ruído e perda de informação: a carbonização pode obliterar traços, aumentar o contraste entre fibras e tinta de formas imprevisíveis, e introduzir padrões que confundem algoritmos.
– Dados de treino limitados: não há grandes corpora rotulados de escrita grega antiga em condições de carbonização, o que dificulta o treinamento supervisionado. O aprendizado por transferência e a geração de dados sintéticos são estratégias para mitigar essa limitação, mas introduzem riscos de viés.
– Ambiguidade paleográfica: mesmo imagens de alta qualidade podem preservar traços fragmentários que admitem múltiplas leituras plausíveis. A IA tende a fornecer probabilidades, não certezas, exigindo avaliação crítica por especialistas.
– Questões de validação: como validar uma leitura feita por IA? Procedimentos robustos incluem comparação com transcrições paralelas, análise estatística de versões alternativas e revisão por pares com transparência sobre os parâmetros e modelos usados.

Do ponto de vista epistemológico, a integração de IA à hermenêutica textual requer cuidado para que rotinas algorítmicas não imponham leituras anacrônicas ou filtrem interpretações alternativas essenciais. A IA é uma ferramenta de sugestão, não um árbitro final.

Metodologia detalhada: do escaneamento à leitura

Para que a comunidade científica possa avaliar e replicar resultados, descrevemos uma metodologia típica, inspirada nos procedimentos relatados pela literatura associada à decifração de rolos e pelas observações de Mair (2025):

1. Aquisição de imagem
– Tomografia computadorizada de alta resolução ou imagens multiespectrais para capturar variações de densidade e resposta espectral.
– Ferramentas não invasivas são preferíveis para preservar a integridade material.

2. Pré-processamento
– Correção geométrica e de iluminação, normalização de intensidade e remoção de artefatos sistemáticos.
– Filtragem para realçar limites de traços sobre o fundo fibroso.

3. Segmentação e reconstrução
– Identificação de camadas e superfícies onde os traços textuais se situam.
– Reconstrução tridimensional quando o rolo permanece em espiral, permitindo “folhear” virtualmente.

4. Reconhecimento e classificação
– Aplicação de modelos de reconhecimento ótico adaptados para escrita grega antiga.
– Uso de aprendizado supervisionado e de transferência, aliado a mecanismos de incerteza (probabilidades por caractere).

5. Pós-processamento filológico
– Consolidação das hipóteses de leitura, verificação contra léxicos clássicos, análise paleográfica para identificação de grafia, abreviações e variações dialetais.
– Intervenção humana para resolver polissemias e reconstruir lacunas contextuais.

6. Publicação de resultados e reprodutibilidade
– Divulgação dos dados, dos modelos e dos parâmetros para permitir verificação independente.
– Documentação clara das medidas de controle de qualidade.

A articulação rigorosa entre essas etapas aumenta a confiança nas leituras propostas e facilita a integração do resultado em estudos históricos e filológicos.

Impactos e implicações para estudos clássicos e patrimônio cultural

A decifração de um manuscrito filosófico grego em Herculano teria impactos significativos:

– Filologia e história das ideias: acesso a textos possivelmente perdidos pode alterar compreensões sobre escolas filosóficas, transmissões textuais e influências intelectuais.
– Edição crítica: novos fragmentos exigem trabalho editorial rigoroso, com estabelecimento de variação textual, margens de erro e notas de aparato crítico.
– Conservação e política de acesso: decisões sobre digitalização, publicação de imagens e compartilhamento de modelos associados à IA envolvem responsabilidades curatoriais e legais.
– Formação interdisciplinar: projetos bem-sucedidos demonstram a necessidade de equipes que integrem engenheiros, cientistas de dados, paleógrafos e conservadores.

Essas implicações ressaltam que a tecnologia, por si só, não resolve todas as questões; ela transforma prioridades de pesquisa e modelos de colaboração.

Transparência, reprodutibilidade e governança de dados

Para que os resultados sejam aceitos pela comunidade científica, devem existir mecanismos claros de transparência e reprodutibilidade. Isso inclui disponibilizar:

– Conjuntos de imagens brutas (quando a custódia permitir) ou versões curadas com metadados.
– Metodologias detalhadas, código-fonte de modelos de IA e parâmetros de treinamento.
– Avaliações de incerteza e alternativas de leitura propostas.

A governança de dados também envolve considerações éticas: a digitalização e divulgação de materiais sensíveis podem estar sujeitas a restrições legais e culturais. Protocolos de acesso controlado e parcerias com instituições detentoras do acervo são práticas recomendadas.

Ética, propriedade intelectual e respeito ao patrimônio

A intervenção tecnológica em patrimônio cultural suscita debates éticos. Entre os pontos relevantes:

– Autoria e crédito: algoritmos e equipes devem receber atribuições claras. A contribuição humana — sobretudo a de paleógrafos — não pode ser obscurecida por resultados “automáticos”.
– Propriedade intelectual e direitos de imagem: instituições custodiadoras podem impor limites ao compartilhamento de imagens. A comunidade científica precisa negociar acesso equilibrado entre preservação e pesquisa.
– Risco de banalização: apresentar leituras preliminares como descobertas definitivas pode gerar mal-entendidos públicos. A comunicação científica deve enfatizar graus de confiança e etapas de validação.
– Impacto cultural: textos resgatados alteram narrativas culturais e históricas; decisões sobre divulgação requerem sensibilidade a contextos locais e acadêmicos.

São responsabilidades essenciais dos pesquisadores e gestores de projetos garantir práticas éticas e transparentes.

Estudos de caso e precedentes relevantes

Embora o episódio relatado por Mair (2025) seja emblemático, não é isolado. Projetos anteriores envolvendo leitura multiespectral e algoritmos de visão computacional já haviam obtido avanços em manuscritos medievais, inscrições e palimpsestos. Esses precedentes mostram caminhos de interoperabilidade entre tecnologias e estudos humanísticos e oferecem lições sobre validação e disseminação de resultados.

Comparando com tais casos, a singularidade dos rolos de Herculano reside na combinação de fragilidade material, valor histórico e complexidade da escrita. A abordagem híbrida (IA + expertise humana) emerge como a estratégia mais robusta.

Perspectivas futuras: pesquisa, formação e políticas

As perspectivas para a pesquisa são amplas:

– Desenvolvimento de bancos de dados rotulados de escrita antiga que permitam treino mais robusto de modelos.
– Ferramentas de IA explicáveis que mostrem por que uma leitura foi sugerida, facilitando a avaliação crítica por especialistas.
– Programas interdisciplinares de formação que integrem paleografia, ciências da computação e conservação.
– Políticas institucionais que promovam parcerias entre universidades, museus e agências de patrimônio para apoiar projetos de larga escala.

A longo prazo, a sinergia entre IA e humanidades promete democratizar o acesso a acervos e acelerar descobertas, mantendo, porém, a necessidade de critérios metodológicos e éticos rigorosos.

Conclusão

O uso de inteligência artificial na decifração de um manuscrito grego carbonizado de Herculano representa um marco metodológico e simbólico. Conforme documentado por Victor Mair (2025), a iniciativa demonstra que “AI (and human ingenuity) to the rescue” — expressão que sintetiza a parceria entre algoritmos e saber humano (MAIR, 2025). Contudo, a promessa tecnológica exige uma arquitetura de trabalho que priorize transparência, reprodutibilidade, avaliação crítica e salvaguarda do patrimônio cultural.

Para a comunidade científica, o evento é um chamado para consolidar padrões técnicos e éticos, investir em formação interdisciplinar e fomentar a infraestrutura de dados necessária. Apenas por meio de práticas colaborativas, documentadas e eticamente orientadas será possível transformar leituras algorítmicas em conhecimento histórico sólido e confiável.

Referências

MAIR, Victor. AI to the rescue of a Greek philosopher’s work buried by Vesuvius. Language Log, University of Pennsylvania, 15 out. 2025. Disponível em: https://languagelog.ldc.upenn.edu/nll/?p=71669. Acesso em: 15 out. 2025.
Fonte: Upenn.edu. Reportagem de Victor Mair. AI to the rescue of a Greek philosopher’s work buried by Vesuvius. 2025-10-15T21:43:14Z. Disponível em: https://languagelog.ldc.upenn.edu/nll/?p=71669. Acesso em: 2025-10-15T21:43:14Z.

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