Introdução
Vladimir Nabokov é frequentemente apresentado, na cultura literária global, como um autor de genialidade técnica e imaginação ímpar — um escritor para quem as palavras eram instrumentos de precisão e invenção. No entanto, como ressalta Boris Kachka em reportagem para The Atlantic, “a transição de Nabokov afastando-se do russo, sua língua nativa, não foi uma transformação instantânea e sem esforço” (KACHKA, 2025). Esta observação funda o eixo deste artigo: compreender a trajetória de escrita de Nabokov como processo histórico, linguístico e estético, e não como uma simples troca de código linguístico sem perdas, custos ou mediações.
Neste texto, destinado a leitores profissionais e especializados — críticos literários, pesquisadores em estudos de tradução, docentes e escritores — examinarei o contexto histórico da transição de Nabokov, as implicações estilísticas e cognitivas da mudança de língua de composição, o papel da tradução e da autotradução, bem como a recepção crítica dessa travessia. Ao longo do artigo, trarei análises que articulam elementos biográficos, estéticos e linguísticos, sempre com referência à reportagem de Kachka (KACHKA, 2025) como ponto de partida jornalístico e interpretativo.
Contexto histórico e biográfico
Vladimir Nabokov nasceu em 1899 em São Petersburgo, em uma família de aristocratas russos; formou-se culturalmente e literariamente no ambiente do Império Russo e da diáspora. A Revolução de 1917 e o subsequente exílio moldaram sua condição de escritor bilíngue e cosmopolita. Durante décadas, compôs e publicou em russo, cultivando um corpo de trabalho reconhecido entre leitores e críticos de língua russa. Com o deslocamento para a Europa e, posteriormente, para os Estados Unidos, sua prática literária sofreu transformações que afetaram tanto a linguagem quanto os procedimentos criativos.
A passagem para escrever extensivamente em inglês — que culminou em obras que hoje são consideradas centrais na literatura anglófona, como Lolita — não se deu de forma abrupta ou puramente instrumental. Como lembra Kachka, o “salto” de Nabokov para o inglês exigiu um processo de reelaboração de seu repertório estético e linguístico, envolvendo escolhas conscientes sobre som, ritmo, sintaxe e repertório imagético (KACHKA, 2025).
O processo de mudança linguística: esforço, adaptação e recalibração estilística
Trocar a língua de composição implica muito mais do que substituir léxico e gramática: exige reconfiguração de hábitos mentais, memória sonora e sensorial, e, em muitos casos, renúncia e ganho simultâneos. Nabokov encarou essa transição como um trabalho meticuloso. Sua atitude em relação ao idioma era técnica e quase científica: ele apreciava a fonética, o ritmo e as nuances semânticas de cada língua, e fazia escolhas conscientes sobre como essas propriedades se manifestariam em obras concebidas em outro código linguístico.
Do ponto de vista estilístico, a escrita em russo e em inglês de Nabokov revela diferenças notáveis. O russo permitia-lhe — e recebeu dele — jogos morfológicos e sonoridades específicas que se ancoravam numa tradição poética e romanesca particular. O inglês, idioma no qual escreveu algumas de suas obras mais famosas, ofereceu-lhe possibilidades métricas e lexicais diferentes, mas também impôs desafios de tradução de suas estratégias sonoras e sintáticas originais.
Kachka destaca que a mudança não foi meramente técnica: tratou-se de um processo de recalibração do próprio ofício do autor (KACHKA, 2025). Essa recalibração se deu, em parte, por meio da leitura intensiva de modelos anglófonos, da prática constante na nova língua e da experimentação formal que marcou a carreira madura de Nabokov.
Som, ritmo e a materialidade da linguagem
Uma das marcas de Nabokov é a atenção obsessiva ao som das palavras — uma atenção que atravessa idiomas. Contudo, os recursos sonoros do russo e do inglês não são intercambiáveis de forma direta. O modo como Nabokov preservou efeitos e ritmos ao migrar de língua envolve escolhas estéticas sofisticadas: recriar aliterações, adaptar jogos de sonoridade, substituir imagens que funcionavam por similaridades fonéticas, ou aceitar que algumas sutilezas seriam intraduzíveis.
Essa conscientização sobre a materialidade verbal implica que a escrita bilingue de Nabokov não seja uma mera duplicação de significados, mas uma reinvenção formal. Em outras palavras, ao compor em inglês, ele não somente transportava enredos e personagens; reformulava a textura sonora das frases, a cadência narrativa e a arquitetura sintática. O leitor atento percebe que certas invariantes temáticas persistem, mas que a manipulação da linguagem como matéria muda, ganhando novas inflexões e efeitos.
Tradução, autotradução e a ética do autor bilingue
A prática da tradução ocupa um lugar central na análise da trajetória de Nabokov. Autores que escrevem em mais de uma língua muitas vezes traduzem suas próprias obras, ou supervisionam traduções — práticas que envolvem decisões autoritárias sobre equivalência, fidelidade e transformação. Nabokov, cuja relação com a língua era técnica e controladora, incluiu a tradução como parte do seu ofício criativo.
A autotradução impõe questões éticas e estéticas: o autor deve reconstruir o texto em outra língua preservando a “intenção original” ou pode reinventá-lo conforme as possibilidades do novo idioma? Nabokov mostrou, em diferentes instâncias, tanto o zelo pela lealdade lexical quanto a disposição para reformular passagens quando necessário. Essa ambivalência revela uma visão da tradução como atividade criativa e interventiva, não apenas como reprodução mecânica.
Além disso, a supervisão autoral de traduções por terceiros — comum no caso de obras de grande nome — levanta outra questão: até que ponto a imagem crítica de um autor é moldada pela versão de suas obras que atinge certo público? No caso de Nabokov, as versões em inglês contribuíram decisivamente para sua recepção internacional, mas também implicaram escolhas de sentido e estilo que marcaram a percepção crítica de sua obra em escala global (KACHKA, 2025).
Identidade, memória e exílio
A língua é um componente central da identidade cultural e pessoal. Para um autor exilado como Nabokov, escrever em outra língua pode ser percebido como um ato de transculturação e possibilidade, mas também como perda e deslocamento. A relação entre língua e memória é complexa: a língua materna carrega traços de infância e história familiar, enquanto a língua adotada pode ser associada à reinvenção do sujeito e do projeto artístico.
Kachka sugere que a migração linguística de Nabokov incorporou tensões entre nostalgia e inovação — uma dinâmica em que a fidelidade ao repertório russo coexistia com a necessidade de afirmar-se num novo circuito literário (KACHKA, 2025). A escrita em inglês permitiu maior visibilidade e circulação, mas também exigiu que Nabokov negociassse suas próprias referências culturais e suas estratégias de representação da memória russa.
Recepção crítica e mercado literário
A recepção crítica de um autor que muda de língua é sempre atravessada por fatores extraliterários: redes editoriais, mercados de audiência, instituições acadêmicas e preferências culturais. No caso de Nabokov, a escrita em inglês ampliou enormemente seu alcance literário, trazendo-lhe notoriedade em círculos críticos e mercadológicos que, de outra forma, poderiam ter permanecido inacessíveis para obras publicadas apenas em russo.
Entretanto, essa ampliação não foi isenta de críticas. Alguns comentaristas e tradutores questionaram escolhas interpretativas e versões que privilegiavam determinados aspectos da escrita de Nabokov em detrimento de outros. A mudança de língua suscitou debates sobre autenticidade, apropriação e a própria noção de “autor nacional”. Kachka observa que entender esse debate exige reconhecer a complexidade do trabalho de Nabokov sobre si mesmo e sobre as línguas que habitou (KACHKA, 2025).
Implicações para estudos literários e teoria da tradução
A trajetória de Nabokov oferece lições valiosas para pesquisas em estudos literários, teoria da tradução e linguística aplicada. Primeiro, ilustra que a escrita bilíngue é um campo fecundo para investigar processos cognitivos criativos: como o pensamento literário se manifesta em línguas diferentes e de que modo a escolha de idioma afeta a construção de imagens, metáforas e estrutura narrativa.
Segundo, reforça a necessidade de estudos comparativos que considerem tanto o texto original quanto suas versões, interpretando as variações como manifestações de escolhas estéticas legítimas. Terceiro, evidencia que a tradução pode ser tratada como autocriação quando o autor participa ativamente do processo, exigindo métodos de análise que contemplem paratextos, rascunhos e correspondência autoral para mapear decisões estilísticas.
Finalmente, a experiência de Nabokov convida à reflexão sobre políticas editoriais e educativas: incentivar a leitura comparada, publicar edições bilíngues e promover estudos que resgatem a circulação de textos em múltiplas línguas ajuda a compreender a complexidade das literaturas transnacionais.
Liçõess práticas para escritores e tradutores
Da análise da transição de Nabokov, emergem orientações práticas aplicáveis a escritores que consideram compor em mais de um idioma ou a tradutores que lidam com autores bilíngues:
– Reconhecer que escrever em outra língua exige tempo de maturação: a fluência criativa não é automática, e exige leitura extensa, prática e experimentação.
– Valorizar a materialidade sonora das línguas: o som das palavras, o ritmo e a prosódia são componentes essenciais do estilo e merecem atenção na tradução e na composição.
– Tratar a tradução como atividade criativa: quando possível, envolver o autor no processo para preservar intenções estéticas, sem perder de vista as particularidades expressivas do idioma de chegada.
– Documentar decisões: rascunhos, notas e cartas ajudam a reconstruir a lógica de escolhas linguísticas, subsidiando edições críticas e estudos comparativos.
– Manter sensibilidade cultural: a mudança de língua pode exigir escolhas sobre referências culturais e repertórios simbólicos; a consciência dessas escolhas evita equívocos interpretativos.
Estudo de caso: algumas passagens e estratégias reconstituídas
Sem a pretensão de esgotar o vasto corpus nabokoviano, é possível apontar estratégias recorrentes que ajudam a compreender sua travessia linguística. Entre elas:
– Recriação de efeitos paronímicos: quando um jogo sonoro no russo não tem equivalente direto, Nabokov procurava substitutos em inglês que evocassem efeitos análogos, mesmo que a correspondência não fosse literal.
– Manipulação sintática para preservar cadência: ele frequentemente adotava estruturas frasais não convencionais em inglês, buscando reproduzir ritmos que lhe eram caros do ponto de vista estético.
– Inserção de ressonâncias multiculturais: na escrita em inglês, a presença do mundo russo muitas vezes aparece por meio de imagens, nomes e toques lexicais que mantêm a memória de sua língua de origem sem comprometer a inteligibilidade para leitores anglófonos.
– Estratégias metalinguísticas: Nabokov utilizava comentários autorais e ironia para pontuar o estatuto da língua e brincar com a própria ideia de tradução e remoção cultural.
Essas estratégias demonstram que sua prática não foi de substituição imediata, mas de invenção com as restrições e oportunidades oferecidas pela nova língua.
Conclusão
A análise da transição linguística de Vladimir Nabokov, partindo da reportagem de Boris Kachka (KACHKA, 2025), confirma que a migração de um idioma de composição para outro é um processo complexo, permeado de decisões estéticas, renúncias e ganhos. Mais do que uma mudança de veículo comunicativo, trata-se de uma reorientação do ofício literário, que exige recalibração sonora, sintática e imagética.
Para pesquisadores, tradutores e escritores, a trajetória de Nabokov constitui um estudo de caso exemplar sobre como tradição, memória e inovação articulam-se na produção literária em contextos de exílio e transnacionalidade. Ao mesmo tempo, nos lembra que grande parte do trabalho autoral reside em batalhas discretas com a própria linguagem — batalhas que, embora invisíveis para parte do público, definem a qualidade e a singularidade de uma obra.
Citação direta (tradução livre): “a transição de Nabokov afastando-se do russo, sua língua nativa, não foi uma transformação instantânea e sem esforço” (KACHKA, 2025).
Referência conforme normas ABNT:
KACHKA, Boris. A Great Author’s Ongoing Struggle. The Atlantic, 14 nov. 2025. Disponível em: https://www.theatlantic.com/newsletters/2025/11/books-briefing-vladimir-nabokov-russian-english-struggle/684930/. Acesso em: 14 nov. 2025.
Fonte: The Atlantic. Reportagem de Boris Kachka. A Great Author’s Ongoing Struggle. 2025-11-14T16:15:00Z. Disponível em: https://www.theatlantic.com/newsletters/2025/11/books-briefing-vladimir-nabokov-russian-english-struggle/684930/. Acesso em: 2025-11-14T16:15:00Z.







