Introdução
A incorporação crescente de inteligência artificial (IA) no processamento de sinistros por operadoras de saúde alterou profundamente o fluxo administrativo dos reembolsos e autorizações. Em paralelo ao ganho em escala e velocidade, cresceu o número de negativas de cobertura — um fenômeno com impacto direto sobre o acesso aos cuidados e a solvência dos pacientes. Em 2023, aproximadamente 73 milhões de beneficiários de planos vinculados ao Affordable Care Act tiveram solicitações por serviços em rede negadas, e menos de 1% desses beneficiários moveram recursos administrativos ou apelações formais contra as decisões (PBS, 2025).
Este artigo, voltado a profissionais da saúde, gestores, advogados de saúde e especialistas em políticas públicas, analisa como pacientes e coletivos estão respondendo a esse cenário por meio do uso estratégico de IA. Aborda técnicas empregadas, desafios regulatórios e éticos, recomendações práticas e perspectivas para política e governança da tecnologia no setor de saúde.
O panorama atual: seguradoras, IA e o aumento das negativas
A modernização dos processos de sinistros levou operadoras a utilizar modelos de machine learning, regras baseadas em lógica e sistemas de processamento automatizado para avaliar autorizações e reembolsos. Essas ferramentas visam reduzir custos administrativos, acelerar a análise de grandes volumes de dados e padronizar decisões. Contudo, a automação pode ampliar vieses embutidos nos modelos, replicar lacunas nos conjuntos de dados e operar com regras opacas que dificultam a contestação pelo paciente.
As consequências são tangíveis. A reportagem original destaca que, em 2023, cerca de 73 milhões de pessoas em planos do Affordable Care Act tiveram serviços em rede negados (PBS, 2025). Esse número revela não apenas uma sobrecarga de negativas, mas também uma lacuna entre a ocorrência da negativa e a busca efetiva por recursos por parte dos beneficiários — menos de 1% chegaram a contestar formalmente. Essa discrepância evidencia uma barreira de acesso ao processo de apelação, seja por desconhecimento, custo, complexidade ou medo de retaliação.
Estatísticas e evidências: impacto nos beneficiários
Ao analisar o impacto prático das negativas de sinistros, é preciso considerar três dimensões principais: financeira, clínica e comportamental. Financeiramente, negativas podem gerar cobranças diretas ao paciente, dívidas médicas e prejuízo ao orçamento familiar. Clinicamente, a interrupção de tratamentos ou a recusa de procedimentos autorizados resulta em risco de agravamento de condições de saúde. Comportamentalmente, repetidas negativas minam a confiança no sistema e levam pacientes a adiar cuidados, com consequências de saúde pública.
A baixa taxa de recurso — inferior a 1% segundo a fonte analisada — sinaliza que a maioria dos pacientes não utiliza mecanismos formais para contestar decisões. Entre as razões apontadas em estudos correlatos estão dificuldade de acesso a documentação médica organizada, desconhecimento dos prazos de apelação, falta de assistência jurídica especializada e barreiras tecnológicas para submeter recursos (PBS, 2025).
Como pacientes estão utilizando IA para reagir
Em resposta ao aumento das negativas, pacientes e coletivos civis vêm adotando soluções baseadas em IA para preparar e automatizar recursos. Essas iniciativas se manifestam em várias frentes:
– Geração de cartas de apelação com linguagem técnica: ferramentas de geração de textos treinadas em linguagem médica e jurídica auxiliam na redação de recursos precisos, com referências a protocolos clínicos e guidelines que sustentem o pedido de cobertura.
– Extração e sumarização de evidências clínicas: soluções de NLP (processamento de linguagem natural) associadas a OCR (reconhecimento óptico de caracteres) extraem relatórios, exames e notas médicas, gerando resumos estruturados que provam a necessidade do tratamento ou procedimento.
– Mapeamento automático de códigos: algoritmos auxiliam na identificação de códigos ICD/CPT/CBHPM relevantes, correlacionando justificativas clínicas com códigos que a operadora exige, para reduzir motivos formais de recusa por divergência de codificação.
– Plataformas colaborativas: comunidades online e aplicativos reúnem modelos de recurso, históricos de decisões e orientações para submissão. Em alguns casos, essas plataformas incorporam módulos de IA para sugerir argumentos e precedentes administrativos.
– Ferramentas de auditoria algorítmica: grupos de defesa do consumidor e pesquisadores usam IA para reunir amostras de decisões automatizadas e identificar padrões de recusa injustificada, embasando denúncias regulatórias.
Essas estratégias não substituem o suporte clínico-jurídico tradicional, mas potencializam a capacidade do paciente de organizar evidências e formular argumentos técnicos com rapidez, reduzindo barreiras práticas que historicamente atrapalham recursos.
Técnicas e ferramentas empregadas
Para profissionais que desejam compreender as tecnologias aplicadas nessas iniciativas, destacam-se as seguintes técnicas:
– Processamento de linguagem natural (NLP): utilizado para extrair conceitos clínicos de textos livres (diagnóstico, histórico, indicação terapêutica) e para transformar documentação médica em argumentos coerentes para o recurso.
– Reconhecimento óptico de caracteres (OCR): transforma imagens e arquivos PDF de exames e prontuários em texto pesquisável, essencial quando a documentação fornecida pelo provedor está em formato não-estruturado.
– Modelos de linguagem especializada: modelos treinados ou ajustados com corpora médicas e jurídicas auxiliam na redação de apelações com linguagem técnica adequada, incorporando referências a guidelines e evidências.
– Sistemas de correspondência de códigos (mapping): algoritmos que conectam descrições clínicas a códigos de faturamento (CPT, ICD, CBHPM), reduzindo negações por erro de codificação.
– Análise de padrões e dashboards: visualizações que mostram taxa de negativas por tipo de procedimento, operadora e justificativa, permitindo priorizar recursos com maior probabilidade de reversão.
– Integração com portais de operadoras: bots e automações que preenchem formulários online de apelação ou geram pacotes de documentação conforme exigido por cada operadora.
A sinergia dessas técnicas transforma informações dispersas em argumentos documentados, acelerando a construção de um recurso bem fundamentado.
Desafios jurídicos e regulatórios
O uso de IA por pacientes também levanta questões jurídicas relevantes:
– Privacidade e proteção de dados: o processamento de prontuários e exames requer conformidade com leis de proteção de dados (por exemplo, HIPAA nos EUA; LGPD no Brasil) e garantias de segurança quando se utilizam serviços em nuvem.
– Responsabilidade e precisão: modelos de linguagem podem gerar formulários persuasivos, mas também interpretar mal contextos clínicos. A responsabilidade por informações errôneas em um recurso — e suas consequências legais — merece atenção.
– Transparência algorítmica: quando a decisão da seguradora é automatizada, o paciente tem direito a entender os critérios utilizados. Reguladores debatem requisitos de explicabilidade e auditoria para sistemas que afetam direitos de acesso à saúde.
– Acesso a suporte jurídico: muitos pacientes carecem de recursos para contratar advogados especializados. Políticas públicas podem incentivar assistências públicas ou parcerias pro-bono entre escritórios de advocacia e plataformas tecnológicas.
Ainda que as ferramentas de IA ampliem a capacidade técnica dos pacientes, o quadro regulatório precisa evoluir para garantir que o uso dessas ferramentas não gere novos riscos e que o direito de apelação seja efetivamente exequível.
Aspectos éticos e de equidade
A adoção de IA por pacientes não é homogênea. O acesso a dispositivos, conectividade, literacia digital e conhecimento técnico cria desigualdades. Pacientes mais vulneráveis correm o risco de ficar excluídos de soluções tecnológicas, ampliando o hiato entre quem consegue reverter negativas e quem não tem recursos.
Além disso, modelos de IA treinados em dados de populações específicas podem reproduzir vieses, favorecendo argumentos que se alinhem a padrões majoritários. Grupos minoritários podem sofrer discriminação algorítmica tanto nas decisões das operadoras quanto nas ferramentas de apoio se estas não forem projetadas com diversidade nos dados.
As implicações éticas exigem que iniciativas tecnológicas incorporem design inclusivo, testes contra viés e programas de capacitação para populações de menor acesso digital.
Impacto para provedores e para o sistema de saúde
Operadoras, prestadores e gestores hospitalares também sentem efeitos colaterais do crescimento das negativas automatizadas e da resposta tecnológica dos pacientes. Para prestadores, o aumento de negativas implica maior esforço administrativo na contestação, retrabalho na codificação e potencial perda de receita quando recursos não são efetivados.
Por outro lado, a crescente publicação de padrões de argumentação bem-sucedidos pode contribuir para melhorar a qualidade da documentação clínica, já que canais de contestação bem fundamentados tendem a exigir robustez nas justificativas clínicas. Em nível sistêmico, maior transparência e contestação podem incentivar operadoras a revisar critérios automatizados e reduzir decisões injustificadas.
Recomendações para profissionais e gestores
Para mitigar riscos e potencializar os benefícios da IA como ferramenta de contestação, sugerem-se medidas práticas:
– Implementar fluxos internos que facilitem a documentação padronizada: orientação a clínicos para registrar informações essenciais que sustentem autorizações e recursos.
– Adotar ferramentas de extração e mapeamento de códigos: soluções que integrem prontuário eletrônico, mapeamento de códigos e geração automatizada de pacotes de apelação.
– Garantir privacidade e conformidade: revisar contratos com fornecedores de IA, estabelecer cláusulas de proteção de dados e realizar avaliações de impacto à privacidade.
– Capacitação de pacientes e profissionais: promover materiais educativos e treinamentos sobre prazos, documentação exigida e utilização segura de ferramentas digitais.
– Fomentar parcerias público-privadas e pro-bono: articulação entre operadores, entidades de defesa do consumidor, escritórios de advocacia e startups para oferecer suporte a populações vulneráveis.
– Monitorar métricas de equidade: acompanhar quem está usando as ferramentas de IA, taxas de sucesso por grupo sociodemográfico e indicadores de acesso para identificar e corrigir desigualdades.
Essas medidas ajudam a transformar o fenômeno tecnológico num vetor de melhoria da governança de sinistros, sem sacrificar proteção ao paciente.
Boas práticas na elaboração de recursos assistidos por IA
Ao utilizar IA para gerar ou apoiar recursos, recomenda-se seguir um conjunto de boas práticas:
– Validar fontes e evidências clínicas: sempre incluir referências às diretrizes clínicas reconhecidas, estudos de eficácia e notas médicas assinadas por profissionais.
– Revisar manualmente textos gerados por IA: garantir que argumentos automáticos não incorporem erros factuais ou linguagem que possa ser interpretada como imprecisa.
– Preservar a cadeia de custódia da documentação: organizar arquivos com metadados que comprovem datas de emissão, emissão por profissional e integridade do documento.
– Documentar o uso de IA: registrar quais ferramentas foram utilizadas, versões e prompts relevantes — isso pode ser útil em processos regulatorios ou judiciais.
– Buscar suporte jurídico quando necessário: para casos complexos, contar com opinião legal especializada aumenta as chances de reversão.
A combinação de automação e controle humano aumenta a robustez do recurso e minimiza riscos legais.
Perspectivas e conclusões
A emergência de ferramentas de IA como apoio aos pacientes na contestação de negativas de reembolso representa uma evolução relevante na relação entre consumidores e operadoras de saúde. Por um lado, essas tecnologias democratizam conhecimento técnico e reduzem barreiras operacionais; por outro, evidenciam desafios regulatórios, éticos e de equidade que exigem resposta coordenada de atores públicos e privados.
A estatística central — 73 milhões de negativas com menos de 1% de recursos — indica um problema sistêmico que precisa ser enfrentado por políticas de transparência, padronização de apelações e mecanismos de auxílio ao paciente (PBS, 2025). Para que a IA cumpra papel de ferramenta de empoderamento e não fonte adicional de exclusão, é crucial desenvolver frameworks de governança, proteção de dados e capacitação, além de incentivar auditorias independentes de sistemas automatizados de decisão.
Em última instância, o objetivo deve ser garantir que a tecnologia sirva para ampliar o acesso a cuidados adequados e proteger direitos dos pacientes, e não para automatizar barreiras ao tratamento.
Referências (conforme ABNT)
PBS. How patients are using AI to fight back against denied insurance claims. Biztoc.com, 22 nov. 2025. Disponível em: https://biztoc.com/x/93d614c1a887ede9. Acesso em: 22 nov. 2025.
Observação sobre citações: os dados estatísticos e a narrativa sobre o uso de IA por parte dos pacientes foram fundamentados na reportagem citada (PBS, 2025), que documenta tendências recentes e exemplos de iniciativas cidadãs no enfrentamento de negativas de sinistros.
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Fonte: Biztoc.com. Reportagem de pbs.org. How patients are using AI to fight back against denied insurance claims. 2025-11-22T22:41:32Z. Disponível em: https://biztoc.com/x/93d614c1a887ede9. Acesso em: 2025-11-22T22:41:32Z.







