A recente observação pública de Michael Burry sobre a forma como a depreciação pode influenciar a percepção dos lucros das maiores empresas de tecnologia reacendeu um debate essencial entre investidores, analistas e reguladores. Burry, conhecido por sua aposta contra o mercado imobiliário dos EUA antes da crise financeira de 2008 e hoje à frente da Scion Asset Management, voltou a chamar atenção para a possibilidade de que práticas contábeis e ajustes de resultado estejam inflando indicadores de desempenho das Big Tech (WITTENSTEIN, 2025).
A discussão transcende a figura de Burry e demanda uma análise técnica e crítica sobre como depreciação, amortização e medidas contábeis alternativas — tais como resultados ajustados não-GAAP — afetam a avaliação, a governança e os riscos enfrentados por investidores que detêm ou analisam posições em empresas de tecnologia de grande capitalização. Este artigo oferece uma revisão aprofundada desses elementos, com foco em implicações práticas para gestores, analistas e tomadores de decisão.
Contexto e relevância do comentário de Michael Burry
As observações de Michael Burry ganham relevância por sua trajetória e por sua capacidade de formular leituras contrárias ao consenso do mercado. Quando um gestor com histórico de previsões contundentes aponta para potenciais distorções contábeis, os mercados tendem a prestar atenção — não necessariamente por acreditar imediatamente na premissa, mas por reconhecer a necessidade de reavaliar pressupostos fundamentais (WITTENSTEIN, 2025).
O tema central da crítica diz respeito à depreciação e, mais amplamente, às políticas de mensuração e reconhecimento de custos que afetam o lucro líquido e os lucros operacionais reportados pelas Big Tech. Quando lucros crescentes sustentam múltiplos elevados, qualquer elemento contábil que possa alterar essa trajetória merece escrutínio.
Depreciação, amortização e capitalização: conceitos-chave
Para avaliar as alegações de Burry, é necessário recapitular definições e práticas contábeis relevantes:
– Depreciação refere-se à alocação sistemática do custo de ativos tangíveis (equipamentos, data centers, hardware) ao longo de sua vida útil estimada. A escolha do método (linha reta, soma dos dígitos dos anos, unidades de produção) e da vida útil influencia diretamente o valor da despesa anual.
– Amortização aplica-se a ativos intangíveis com vida útil limitada (por exemplo, patentes ou software capitalizado). A intensificação das atividades de pesquisa, desenvolvimento e aquisição em tecnologia torna a amortização um componente significativo do resultado reportado.
– Capitalização de gastos (por exemplo, custos com desenvolvimento de software, custos de implementação de tecnologia) retarda o reconhecimento como despesa imediata, transformando desembolsos em ativos que serão depreciados/amortizados ao longo de vários períodos.
– Métricas não-GAAP, como EBITDA ajustado ou lucro operacional ajustado, frequentemente excluem depreciação, amortização e itens não recorrentes. Essas medidas são amplamente usadas para avaliar a rentabilidade operacional “subjacente”, mas podem mascarar a efetiva drenagem de caixa ou o custo econômico do uso de ativos.
As escolhas entre reconhecer imediatamente um gasto como despesa ou capitalizá-lo como ativo afetam lucros, margens e indicadores de rentabilidade, tendo impacto direto sobre múltiplos de mercado e decisões de investimento.
Como as práticas contábeis podem inflar a percepção de lucros
Vários mecanismos contábeis podem aumentar a aparência de lucratividade sem necessariamente refletir uma melhora proporcional na geração de caixa livre:
– Capitalização de gastos operacionais relevantes transforma custos correntes em ativos a serem amortizados, elevando lucros operacionais no curto prazo.
– Vida útil excessivamente estendida para ativos depreciáveis reduz a despesa anual de depreciação, elevando lucros atuais.
– Exclusões em métricas não-GAAP, como a retirada de despesas com remuneração baseada em ações, suprimem custos que, embora não representem saída de caixa imediata, diluem os acionistas e representam custo econômico real.
– Reclassificações contábeis e revisões de políticas, quando não suficientemente transparentes, podem dificultar a comparação histórica e a detecção de tendências verdadeiras na rentabilidade.
Quando grandes empresas de tecnologia exibem margens operacionais elevadas e crescimento consistente de lucros, analistas devem verificar se esse desempenho decorre de geração de caixa robusta ou de ajustes contábeis que suavizam resultados.
Implicações para avaliação e precificação de ações
A valorização das Big Tech frequentemente incorpora expectativas de lucros futuros elevados e taxas de crescimento sustentadas. Se grande parte do crescimento do lucro reportado decorre de ajustes contábeis favoráveis, a base de lucro usada para projetar fluxos de caixa futuros pode estar inflada. Implicações práticas:
– Multiplicadores de mercado (P/L, EV/EBITDA) podem parecer razoáveis quando aplicados a resultados ajustados; no entanto, ao ajustar por depreciação, amortização e capitalizações, esses múltiplos podem revelar um preço mais premium.
– Modelos de desconto de fluxos de caixa dependem de projeções de caixa livre. Diferenças entre lucro contábil e geração de caixa — especialmente quando custos são capitalizados — exigem correções para evitar viés otimista.
– A sensibilidade do valuation a mudanças em políticas contábeis (vida útil dos ativos, critérios de capitalização) é uma vulnerabilidade que pode provocar reavaliações abruptas se práticas forem revistas ou se normativas contábeis mudarem.
Investidores que utilizam métricas ajustadas devem reconciliar resultados não-GAAP com resultados GAAP e priorizar análise de fluxo de caixa operacional e capex para avaliar sustentabilidade de lucros.
Riscos regulatórios e de governança
A concentração de receitas e lucros nas maiores empresas de tecnologia coloca essas companhias sob maior escrutínio regulatório. Aspectos relevantes:
– Órgãos reguladores e normativos contábeis (SEC, FASB nos EUA; em âmbito internacional, IASB) podem intensificar exigências de divulgação e rever critérios de mensuração de ativos intangíveis e capitalização de custos.
– A pressão pública e de investidores institucionais por maior transparência pode resultar em exigência de reconciliações mais detalhadas entre medidas GAAP e não-GAAP, além de notas explicativas mais pormenorizadas sobre vida útil de ativos e políticas de capitalização.
– Risco de litígios caso investidores percebam que informações contábeis foram utilizadas de forma a mascarar a real performance financeira.
Empresas que adotam políticas contábeis agressivas podem enfrentar custos reputacionais e legais se for comprovado que houve práticas destinadas a distorcer resultados.
Métricas alternativas e melhores práticas de análise
Diante das limitações das medidas contábeis tradicionais, analistas e gestores deveriam incorporar métricas que reduzam a assimetria entre lucro reportado e valor econômico real. Recomendações práticas:
– Focar em fluxo de caixa livre (operacional menos capex) e margem de conversão de caixa (cash conversion margin) para avaliar qualidade do lucro.
– Ajustar EBITDA para incorporar despesas recorrentes que afetem sustentabilidade do lucro, como gastos com P&D capitalizados e amortização de aquisições.
– Analisar a evolução do capex em relação à receita: empresas que capitalizam intensamente tendem a ter capex elevado que, quando reconhecido corretamente, reduz lucratividade futura.
– Examinar notas explicativas das demonstrações financeiras para identificar mudanças em critérios de vida útil, políticas de capitalização e estimativas que possam afetar a comparabilidade.
– Realizar stress tests nos modelos de fluxo de caixa, considerando cenários em que políticas contábeis sejam revertidas ou revistas.
A combinação dessas práticas melhora a robustez da avaliação e reduz a exposição a surpresas decorrentes de ajustes contábeis.
Impacto para investidores institucionais e tomadores de decisão
Gestores de fundos, fundos de pensão e investidores institucionais devem adotar uma postura criteriosa diante das alegações de distorção de lucros:
– Due diligence ativa: aprofundar análise das notas explicativas e da qualidade dos lucros antes de estabelecer alocações relevantes.
– Monitoramento contínuo de métricas de fluxo de caixa e alavancagem operacional: avaliar se a margem operacional é acompanhada por geração de caixa consistente.
– Engajamento com governança corporativa: pressionar por maior transparência na divulgação e por políticas contábeis conservadoras.
– Considerar ajustes de valuation para riscos relacionados à persistência de políticas contábeis agressivas e à possível reversão regulatória.
A prudência na avaliação contábil e a exigência de transparência são formas de mitigar riscos sistêmicos para carteiras com exposição a grandes empresas de tecnologia.
Possíveis cenários de mercado
A partir das discussões sobre depreciação e lucros, alguns cenários plausíveis podem ser considerados:
– Cenário conservador: Reguladores exigem maior transparência; empresas ajustam políticas contábeis para maior conservadorismo. Isso poderia levar a um ajuste gradual nos múltiplos de mercado, com reprecificação de lucros históricos.
– Cenário de manutenção: As práticas atuais persistem sem mudanças significativas nas normas. O mercado continua a valorizar crescimento e participação de mercado, com pouca alteração estrutural nas avaliações.
– Cenário de correção abrupta: Investidores, ao detectar uma discordância significativa entre lucro reportado e geração de caixa, promovem vendas em massa de papéis das Big Tech, gerando volatilidade e possível reprecificação rápida.
Cada cenário traz implicações para alocação de ativos, hedge e gestão de risco.
Recomendações práticas para analistas e gestores
Com base na análise, seguem recomendações aplicáveis:
– Priorizar avaliação da qualidade do lucro, utilizando fluxo de caixa e métricas ajustadas que integrem amortizações e capitalizações.
– Exigir transparência adicional: solicitar reconciliações detalhadas entre medidas GAAP e não-GAAP, com explicitação de impactos por políticas contábeis.
– Realizar análises de sensibilidade sobre vida útil dos ativos e taxas de amortização para entender o impacto no lucro futuro.
– Incorporar cenários adversos de reversão de políticas contábeis nos modelos de valuation.
– Considerar estratégias de hedge para posições significativas em Big Tech e limitar alocação concentrada se a qualidade do lucro for incerta.
Tais medidas reduzem a exposição a riscos contábeis e melhoram a resiliência de carteiras institucionais.
Limitações da crítica e defesa das práticas contábeis
É importante reconhecer que nem toda capitalização ou política contábil agressiva implica má-fé ou manipulação. Argumentos contrários incluem:
– Empresas de tecnologia investem pesadamente em ativos que produzem benefícios econômicos plurianuais; capitalização pode refletir adequadamente o consumo desses benefícios.
– Métricas não-GAAP são usadas para iluminar a performance operacional subjacente; quando divulgadas de forma transparente e reconciliadas, ajudam investidores a entender o negócio.
– A complexidade dos modelos de negócio digital, com receitas recorrentes e base instalada, exige julgamentos contábeis que têm algum grau de subjetividade.
Mesmo assim, a crítica de Burry funciona como um lembrete para praticantes: julgamento contábil e divulgação devem estar alinhados ao interesse dos acionistas e da economia real.
Conclusão: o que os investidores devem levar em conta
A reclamação de Michael Burry sobre depreciação e lucros das Big Tech é um alerta que reforça a necessidade de análise crítica das demonstrações financeiras. Para investidores e analistas profissionais, a mensagem prática é clara: não aceitar indicadores de lucro ao pé da letra. É imprescindível:
– Verificar qualidade do lucro por meio de fluxo de caixa e reconciliações entre GAAP e não-GAAP.
– Monitorar políticas contábeis, vida útil de ativos e práticas de capitalização.
– Incorporar cenários de reversão contábil em modelos de risco e valuation.
A solidez da avaliação de empresas de tecnologia depende cada vez mais da capacidade de distinguir desempenho econômico real de efeitos contábeis que suavizam resultados. A observação de Burry serve como catalisador para um escrutínio renovado sobre transparência, governança e sustentabilidade dos lucros no setor.
Referência em texto: (WITTENSTEIN, 2025).
Fonte: Yahoo Entertainment. Reportagem de Jeran Wittenstein. Burry’s Depreciation Gripe Shines Spotlight on Big Tech Profits. 2025-11-14T10:44:09Z. Disponível em: https://finance.yahoo.com/news/burry-depreciation-gripe-shines-spotlight-104409439.html. Acesso em: 2025-11-14T10:44:09Z.







