Introdução: o alerta de voz autoral contra a automatização
A recente matéria publicada na Forbes traz declarações contundentes de Simu Liu e Guillermo del Toro sobre a tentação, por parte da indústria cinematográfica, de usar inteligência artificial (IA) para substituir artistas em funções como figurantes e trabalhos de apoio. Segundo a reportagem, a possibilidade de recriar digitalmente figurantes foi descrita por Liu como “tão antitética” a sua visão do ofício (MONTGOMERY, 2025). Del Toro, por sua vez, enfatiza que a arte perde sua dimensão essencial quando o elemento humano é suprimido, implicando riscos para a narrativa, a autenticidade estética e a sustentabilidade profissional de milhares de trabalhadores criativos (MONTGOMERY, 2025).
Este texto oferece uma análise aprofundada dessas preocupações, contextualizando-as num cenário maior — que envolve avanços tecnológicos, interesses econômicos, legislação emergente e debates éticos sobre autoria e valor artístico. O objetivo é fornecer a profissionais, gestores, pesquisadores e formuladores de políticas uma visão crítica, fundamentada e orientada para soluções práticas relacionadas ao uso de IA em produções audiovisuais.
Contexto: tecnologia, produção e pressões econômicas em Hollywood
A indústria audiovisual enfrenta hoje uma convergência de pressões: redução de custos, busca por eficiência logística, expectativas de grandes volumes de conteúdo para plataformas de streaming e a disponibilidade crescente de ferramentas de IA que prometem gerar ou manipular imagens e performances com rapidez. Ferramentas capazes de sintetizar rostos, replicar movimentos e gerar multidões virtuais prometem substituir cenas complexas de massa, reduzindo a necessidade de contratar centenas de figurantes ou de deslocar equipes inteiras.
No entanto, a adoção indiscriminada dessas tecnologias cria tensões entre duas ordens de valor: a eficiência econômica e a preservação do capital humano e cultural. Como alertado por Simu Liu e Guillermo del Toro, a decisão de substituir artistas por algoritmos não é apenas técnica ou financeira — trata-se de uma decisão estética e ética que afeta a autenticidade narrativa e a dignidade do trabalho criativo (MONTGOMERY, 2025).
Impactos artísticos: a perda da alma narrativa
A narrativa cinematográfica depende de sutilezas de presença, espontaneidade e interação humana que muitas vezes escapam a modelos computacionais. Aspectos como microexpressões, timing emocional e reações imprevisíveis de figurantes contribuem para a verossimilhança e a profundidade das cenas. Del Toro ressalta que a arte cinematográfica não é apenas montagem de imagens, mas um diálogo entre seres humanos — diretores, atores, técnicos — que imprime camada simbólica e emocional ao produto final (MONTGOMERY, 2025).
Substituir artistas por IA pode produzir imagens tecnicamente convincentes, porém empobrecidas em termos de significado cultural. Quando a presença humana é sintetizada, há risco de uniformização estética e de perda de traços locais, culturais e sociais que enriquecem a narrativa. Além disso, o conhecimento tácito dos profissionais (coreografias de multidão, pequenas correções específicas de cena, improvisações) dificilmente é totalmente codificável.
Consequências sociais e profissionais
A substituição de trabalhadores por tecnologias tem implicações diretas para o mercado de trabalho cultural. Figurantes, dublês, técnicos de apoio e muitos profissionais freelancers dependem dessas oportunidades para sua subsistência e para a manutenção de carreiras que alimentam a cadeia produtiva do audiovisual. A automação pode agravar desigualdades, precarização e desemprego setorial, afetando sobretudo trabalhadores com menor poder de negociação.
Além do aspecto econômico, existe a questão da autoria e do direito de imagem. A criação de performances digitais baseadas em registros de atores reais, sem consentimento claro e remuneração adequada, implica riscos legais e éticos significativos. Guildas e sindicatos têm se mobilizado para definir padrões de proteção, remuneração e consentimento relativo ao uso de imagem e performance em treinamentos de IA.
Ética e direitos: consentimento, transparência e remuneração
A transição para práticas que incorporam IA exige salvaguardas éticas robustas. Três pilares emergem como prioridades:
– Consentimento informado: artistas e figurantes devem ter ciência clara de como imagens e performances serão usadas, se serão treinadas em modelos e por quanto tempo.
– Transparência técnica: produtores precisam informar quando e onde IA foi empregada em cenas e efeitos, de modo a preservar a responsabilização artística e técnica.
– Remuneração e propriedade intelectual: modelos de remuneração que reconheçam a contribuição de artistas cujos gestos, vozes ou rostos alimentam bases de treinamento são essenciais para justiça distributiva.
Tais princípios já estão em discussão em negociações sindicais e propostas legislativas em vários países, e foram destacados no debate motivado pelas declarações de Liu e Del Toro (MONTGOMERY, 2025).
Direito autoral, imagem e responsabilidade civil
O uso de IA no audiovisual cruza fronteiras do direito autoral, direito de imagem e contratos trabalhistas. A replicação digital de um ator pode implicar violação de direitos de autor do intérprete quanto à sua performance, bem como do direito de imagem quando a semelhança é explorada sem autorização. As soluções legais possíveis incluem cláusulas contratuais específicas, licenciamento de uso de imagem para treinamento de modelos e criação de regimes de remuneração proporcional pelo uso de clones digitais.
Além disso, a responsabilidade civil por deepfakes ou manipulações enganosas deve ser tratada com clareza: quem responde por danos reputacionais quando uma imagem ou performance sintética é divulgada? Produtores, desenvolvedores de IA e plataformas de distribuição devem ser responsáveis por garantir que usos indevidos sejam identificados e reparados.
Perspectiva técnica: limitações e potencial complementar
É importante reconhecer que a IA também oferece ferramentas valiosas para a criação audiovisual: restaurar filmes históricos, melhorar workflows de pós-produção, acelerar correções técnicas e potencializar criação de cenários que seriam impossíveis de outra forma. Quando usada como ferramenta complementar — e não como substituto absoluto — a IA pode ampliar as possibilidades criativas.
No entanto, a tecnologia ainda enfrenta limitações: modelos treinados em dados insuficientes ou enviesados reproduzem padrões estereotipados; gerações autônomas podem falhar em reproduzir espontaneidade humana; e problemas de sincronização entre performance humana e síntese digital persistem em contextos complexos. A solução responsável passa por integrar humanos no loop criativo — validação artística contínua, supervisão e intervenção humana nas decisões críticas.
Boas práticas e políticas recomendadas para produtores e estúdios
Com base nas preocupações expostas por Liu e Del Toro e nas melhores práticas emergentes na indústria, recomendo um conjunto de políticas e medidas práticas:
– Estabelecer cláusulas contratuais padrão sobre uso de imagem e dados para treinamento de IA, com recompensas financeiras e limites temporais.
– Implementar consentimento informado e auditoria técnica sobre quais cenas contêm elementos gerados por IA.
– Priorizar soluções híbridas: usar IA para suportar criação (remoção de ruído, ajustes de iluminação, crowd-synthesis controlado) e manter participação humana em papéis centrais.
– Criar fundos setoriais de compensação para artistas afetados pela automação, financiados por estúdios ou plataformas que se beneficiam de reduções de custo via IA.
– Desenvolver protocolos de “marca d’água” digital e certificação de procedência para identificar conteúdos com elementos sintéticos.
– Adotar políticas de diversidade e inclusão nos datasets de treinamento para reduzir vieses e evitar apagamento cultural.
Essas medidas visam equilibrar inovação tecnológica com proteção de valores artísticos e direitos laborais.
O papel de sindicatos, entidades reguladoras e plataformas
Sindicatos como SAG-AFTRA, associações de cineastas e órgãos reguladores têm papel central na construção de normas. Negociações coletivas podem estabelecer limites e práticas de licenciamento, bem como critérios de remuneração para usos digitais. Órgãos reguladores, por sua vez, precisam atualizar marcos jurídicos para abarcar autoria digital, responsabilidades e transparência em conteúdos gerados por IA.
Plataformas de distribuição e streaming também devem assumir compromisso ético, adotando políticas que exijam que estúdios divulguem o uso de IA e que respeitem cláusulas contratuais de artistas. A colaboração entre setores — tecnologia, jurídico, artístico — é essencial para soluções equilibradas.
Estudos de caso e precedentes relevantes
Embora a discussão sobre substituição total seja relativamente recente, já existem precedentes que ajudam a orientar práticas:
– Casos de uso de deepfake para efeitos especiais em longas e séries, geralmente com autorização, demostraram que a técnica é viável quando empregada de modo transparente e com consentimento.
– Experiências de crowdsourcing digital para cenas de multidão têm substituído parcialmente figurantes em pequenas produções, mas frequentemente enfrentam críticas sobre qualidade e autenticidade.
– Negociações sindicais anteriores (por exemplo, relativas ao uso de imagem digital em jogos e publicidade) oferecem modelos contratuais que podem ser adaptados ao audiovisual.
Esses precedentes mostram que a tecnologia pode ser incorporada, mas exige regras claras e participação dos agentes afetados.
Reflexões finais: preservar valor humano enquanto se inova
As observações de Simu Liu e Guillermo del Toro levantam uma questão fundacional: qual é o propósito da arte cinematográfica? Se o objetivo inclui transmitir experiência humana complexa, construir empatia e preservar culturas e memórias, então a eliminação do fator humano ameaça a própria essência do meio. Ao mesmo tempo, a IA não precisa ser vista apenas como um perigo; pode ser uma ferramenta poderosa quando a indústria define limites éticos, econômicos e artísticos que salvaguardem o trabalho humano.
A discussão é uma oportunidade para redefinir contratos sociais entre tecnologia, indústria e trabalhadores culturais. Estabelecer transparência, consentimento e mecanismos de compensação permitirá que estúdios inovem sem apagar a contribuição humana que confere às obras sua profundidade e significado.
Recomendações práticas para gestores e tomadores de decisão
Para executivos de estúdios, diretores e produtores que desejam integrar IA de forma responsável, recomendo:
– Promover auditorias internas para mapear onde a IA pode ser usada sem substituir trabalho humano essencial.
– Validar políticas de consentimento, licenciamento e remuneração com sindicatos e representantes de trabalhadores.
– Investir em treinamento e requalificação de profissionais para que possam trabalhar com IA como ferramenta criativa.
– Manter documentação pública sobre o uso de IA em produções, garantindo rastreabilidade e prestação de contas.
– Priorizar co-criação humano–máquina em projetos experimentais, com protocolos de avaliação estética e ética.
Essas ações ajudam a criar um ecossistema de confiança e sustentabilidade.
Conclusão
As declarações de Simu Liu e Guillermo del Toro, relatadas pela Forbes, são um chamado de atenção necessário: a adoção desenfreada de IA em Hollywood pode comprometer não apenas empregos, mas a própria integridade artística das obras. O desafio é desenvolver políticas, contratos e práticas técnicas que permitam aproveitar os benefícios da IA sem substituir a dimensão humana essencial à narrativa cinematográfica (MONTGOMERY, 2025).
A solução não é proibir tecnologia, mas regular seu uso, garantir direitos e remuneração justos, promover transparência e preservar a autonomia criativa dos artistas. Assim, a indústria poderá inovar sem perder a alma que artistas humanos colocam em cada cena.
Referências (citação ABNT):
MONTGOMERY, Braedon. Simu Liu And Guillermo del Toro Remind Hollywood: Art Needs Artists. Forbes, 28 out. 2025. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/braedonmontgomery/2025/10/28/simu-liu-and-guillermo-del-toro-remind-hollywood-art-needs-artists/. Acesso em: 29 out. 2025.
Fonte: Forbes. Reportagem de Braedon Montgomery, Contributor,







