Introdução: a hipótese de uma UBI de alto valor na era da inteligência artificial
A discussão sobre Renda Básica Universal (UBI) tem se ampliado a partir de avanços tecnológicos que prometem ganhos substanciais de produtividade. Em reportagem publicada no Business Insider, o ex-pesquisador da OpenAI Miles Brundage afirmou que uma UBI de US$10.000 mensais poderia ser factível caso o crescimento econômico impulsionado pela inteligência artificial seja suficientemente elevado (EDMONDS, 2025). A afirmação reacende o debate sobre o montante adequado para programas de renda básica, atualmente testados em nível piloto com pagamentos mensais geralmente entre US$500 e US$1.500, sem condições vinculantes (EDMONDS, 2025).
Este texto apresenta uma análise detalhada das premissas por trás da proposta, dos canais econômicos que poderiam viabilizar uma UBI elevada, das alternativas de financiamento, das implicações para o mercado de trabalho e das limitações e riscos cruciais para formulação de políticas públicas robustas. O objetivo é fornecer subsídios para profissionais, pesquisadores e formuladores de políticas interessados em renda básica universal, UBI e impactos socioeconômicos da inteligência artificial.
Contexto atual: pilotos de UBI e valores praticados
Os experimentos de renda básica realizados globalmente têm variado em escopo e valor. Conforme reportado, a maioria dos programas pilotos de renda básica oferece pagamentos mensais na faixa de US$500 a US$1.500, sem exigência de contrapartidas (EDMONDS, 2025). Esses valores foram escolhidos para avaliar efeitos sobre bem-estar, trabalho, saúde e consumo em períodos controlados, mantendo custos orçamentários relativamente moderados para governos ou financiadores privados.
Embora tais pilotos tenham produzido evidências relevantes sobre a eficácia do conceito em reduzir insegurança financeira e melhorar indicadores de saúde mental e educação, eles não testam a hipótese de uma UBI de magnitude suficientemente alta para substituir amplamente rendas do trabalho ou para sustentar padrões de consumo equivalentes ao salário médio em economias avançadas. A proposta de Brundage de US$10.000 mensais representa, portanto, um salto quantitativo que exige justificativas econômicas robustas sobre capacidade de geração de riqueza e mecanismos de redistribuição em escala.
Argumentos a favor: produtividade, crescimento e captura de valor pela sociedade
A argumentação central que torna plausível uma UBI elevada repousa em três pilares interligados:
1. Ganhos extraordinários de produtividade via inteligência artificial: modelos de IA cada vez mais capazes de automatizar tarefas complexas podem elevar a produtividade total dos fatores (PTF). Se a PTF crescer de forma persistente, a economia pode gerar produção adicional sem expansão proporcional da força de trabalho.
2. Ampliação da base tributária e captura de renda de capital: a geração de excedente econômico crescente permitiria tributar os lucros e rendimentos de ativos com maior eficiência, criando espaço fiscal para transferências diretas. Meios potenciais incluem tributação sobre lucros extraordinários de grandes empresas de tecnologia, impostos sobre ganhos de capital e novos instrumentos como cobranças por uso de infraestrutura digital.
3. Novos instrumentos de política pública para redistribuição: a combinação de melhores registros digitais, pagamentos eletrônicos e políticas de renda básica pode permitir transferências amplas com custos administrativos reduzidos.
Esses argumentos foram ressaltados por Brundage e por outros analistas que avaliam efeitos de longo prazo da IA sobre a economia (EDMONDS, 2025). Em suma, se a IA gerar crescimento econômico substancial e persistente, a sociedade poderia, em tese, redistribuir parte desse ganho por meio de uma UBI robusta.
Modelagem fiscal: como financiar uma UBI de US$10.000 mensais?
Financiar uma UBI equivalente a US$10.000 por mês por pessoa implica custos públicos massivos que variam conforme o universo de beneficiários. Para fins de dimensão, uma UBI universal desse valor para uma população de 330 milhões (aproximação dos EUA) representaria cerca de US$39,6 trilhões anuais, muito superior ao PIB atual. Portanto, a viabilidade requereria combinação de fatores:
– Crescimento econômico exponencial sustentado pela IA, elevando o PIB nominal a níveis que permitam transferências substanciais sem colapso fiscal.
– Reestruturação do sistema tributário para capturar grande parte do excedente gerado pela automação, incluindo tributação progressiva, impostos sobre lucros extraordinários, e mecanismos de tributação sobre fluxos de dados ou uso de modelos de IA.
– Redução ou substituição de outros programas sociais, ou rearranjo do gasto público, com ganhos de eficiência administrativa.
– Introdução de novos instrumentos de financiamento, como dividendos de capital público (ex.: venda de licenças para uso comercial de tecnologia pública), fundos soberanos alimentados por receitas extraordinárias, ou taxas sobre externalidades negativas (por exemplo, poluição ou consumo intensivo de recursos digitais).
Mesmo com essas medidas, a transição para uma UBI desse patamar exigiria décadas e dependeria de cenários otimistas de crescimento. A hipótese de Brundage é que a magnitude do crescimento induzido pela IA poderia, em alguns cenários, criar espaço fiscal suficiente (EDMONDS, 2025). Todavia, a modelagem precisa dos números, inclusive projeções de PIB, base tributável e trajetória da dívida pública, é necessária para avaliar plausibilidade concreta.
Impactos no mercado de trabalho e na participação laboral
Uma das preocupações centrais em debates sobre UBI é seu efeito sobre a oferta de trabalho. Estudos sobre pilotos com valores modestos mostraram impactos limitados na participação laboral, embora também tenham identificado aumento do tempo dedicado a atividades educacionais, cuidado e empreendedorismo. No entanto, uma UBI de US$10.000 mensais poderia ter efeitos muito mais significativos sobre decisões de trabalho, aposentadoria e transição entre ocupações.
Do ponto de vista teórico, os efeitos incluem:
– Efeito renda: trabalhadores podem reduzir horas ou sair do mercado se a UBI permitir manutenção do padrão de vida.
– Efeito substituição: caso a UBI seja combinada com tributos que elevem custos do trabalho, o efeito de substituição pode reduzir ainda mais a oferta laboral.
– Requalificação e empreendedorismo: a segurança financeira pode permitir que indivíduos assumam riscos, invistam em educação ou iniciem negócios, potencialmente estimulando dinamismo econômico.
– Segmentação do mercado: é possível que ocupações com salários baixos enfrentem escassez de trabalhadores, pressionando salários nesses setores.
Avaliar esses efeitos requer experimentos e modelos que considerem a magnitude do benefício, o contexto institucional e a elasticidade da oferta de trabalho em diferentes segmentos. A transição para uma UBI de alto valor deveria, idealmente, ser acompanhada por políticas ativas de emprego, formação profissional e incentivos à criação de empregos que complementem as capacidades da IA.
Riscos macroeconômicos: inflação, produtividade e expectativas
Dois riscos macroeconômicos merecem atenção especial:
1. Inflação por demanda: transferências monetárias massivas podem elevar a demanda agregada rapidamente. Se a oferta de bens e serviços não acompanhar o choque de demanda, os preços podem subir, corroendo o poder real da UBI. A mitigação passa por sincronizar transfers com capacidade produtiva adicional gerada pela IA.
2. Expectativas e sustentabilidade: a credibilidade da política fiscal é crucial. Se mercados e agentes esperam déficits persistentes sem fontes claras de financiamento, a volatilidade macroeconômica e o custo de financiamento público podem aumentar, prejudicando a estabilidade.
Por outro lado, se a IA elevar eficientemente a capacidade produtiva e reduzir custos de produção, a oferta pode aumentar em linha com a demanda, mitigando pressões inflacionárias. O balanço desses fatores dependerá da natureza e da velocidade dos ganhos de produtividade.
Equidade e distribuição: quem ganha e quem perde?
Mesmo que o total econômico cresça, a distribuição dos ganhos entre capital e trabalho determinará o bem-estar agregado. Uma UBI elevada pode reduzir desigualdades se for financiada por tributos progressivos sobre renda e capital. Entretanto, há riscos de deslocamento distributivo:
– Concentração de capital: empresas que controlam tecnologias de IA podem concentrar lucros extraordinários, exigindo mecanismos de taxação eficazes para evitar aumento da desigualdade.
– Beneficiários e não beneficiários: a universalidade simplifica a implementação, mas pode gerar debates sobre alocação de recursos entre gerações e grupos vulneráveis.
– Política de recomposição: políticas complementares, como prestação de serviços públicos de qualidade, são fundamentais para assegurar que a UBI não substitua direitos sociais essenciais.
A reflexão normativa sobre justiça distributiva deve orientar escolhas de financiamento e desenho institucional, de modo a garantir que a UBI contribua para coesão social e igualdade de oportunidades.
Desenhos alternativos e opções de implementação
Diferentes arranjos institucionais podem viabilizar transferências importantes sem a necessidade de uma UBI universal imediata:
– UBI escalonada: início com valores moderados e ajustamento conforme desempenho econômico e avanços de IA.
– Dividendos de tecnologia: distribuição de uma parcela dos lucros industriais ligados à IA para todos os cidadãos, similar ao modelo de dividendos de recursos naturais.
– UBI focalizada temporária: transferências elevadas para grupos mais afetados pela automação enquanto políticas de requalificação são implementadas.
– Renda mínima garantida combinada: manutenção de sistemas de seguridade social com ajustes e UBI como complemento universal.
Cada opção tem implicações distintas para administração, aceitação política e efeitos econômicos. Projetos piloto e simulações macroeconômicas são fundamentais antes de qualquer implementação ampla.
Considerações éticas e políticas
Além das análises econômicas, a proposta de uma UBI de alto valor instiga questões éticas e políticas relevantes:
– Legitimidade democrática: decisões sobre redistribuição de ganhos tecnológicos exigem processos democráticos deliberativos e transparência.
– Dignidade e autonomia: uma UBI elevada pode promover autonomia individual, ampliando escolhas sobre trabalho, família e educação.
– Reconhecimento do trabalho não remunerado: a UBI pode valorizar atividades como cuidado familiar e voluntariado, tradicionalmente invisibilizadas por mercados.
– Risco de captura política: grandes transferências dependem de regimes políticos estáveis e resistência a pressões de captura por interesses econômicos.
A formulação de políticas deve, portanto, incorporar análises de ética pública e governança democrática.
Agenda de pesquisa e experimentação
Para avançar de forma responsável, recomenda-se a seguinte agenda de pesquisa e experimentação:
– Simulações macroeconômicas que integrem prognósticos realistas de ganhos de produtividade por IA e cenários fiscais de tributação.
– Pilotos regionais de UBI com valores crescentes, acompanhados de avaliação rigorosa de efeitos sobre emprego, consumo, inflação local e bem-estar.
– Estudos sobre redistribuição tecnológica: identificação das principais fontes de excedente da IA e mecanismos administrativos para sua taxação.
– Pesquisas qualitativas sobre preferências sociais, percepções de justiça e aceitabilidade política de diferentes desenhos de UBI.
– Avaliações de políticas complementares: formação profissional, serviços públicos e regulação do mercado digital.
Esses passos permitirão calibrar expectativas e desenhar transições políticas factíveis.
Conclusão: viabilidade condicional e necessidade de prudência
A afirmação de Miles Brundage de que uma UBI de US$10.000 mensais poderia ser factível sob um regime de crescimento econômico potenciado pela inteligência artificial (EDMONDS, 2025) é provocativa e útil para ampliar o debate. No entanto, a transição para uma UBI desse porte é condicional a uma série de fatores: ganhos substanciais e sustentados de produtividade; mecanismos eficazes de captura e redistribuição de excedentes; políticas públicas complementares; e robustez institucional para gerir riscos macroeconômicos e distributivos.
Para profissionais e formuladores de políticas, a recomendação é adotar uma abordagem gradualista, baseada em evidência, que combine pilotos controlados, modelagem fiscal e instrumentos de governança que assegurem transparência e equidade. A inteligência artificial tem potencial para ampliar a riqueza social de forma inédita, mas converter esse potencial em bem-estar universal requer desenho institucional deliberado e medidas políticas coerentes.
Referências
EDMONDS, Lauren. Former OpenAI researcher says a $10,000 monthly UBI will be ‘feasible’ with AI-enabled growth. Business Insider, 23 ago. 2025. Disponível em: https://www.businessinsider.com/ex-openai-miles-brundage-ubi-ai-jobs-market-2025-8. Acesso em: 23 ago. 2025.
Citações no texto conforme normas ABNT
Citações e menções à reportagem foram realizadas de acordo com as normas de citação autor-data, por exemplo: (EDMONDS, 2025). Trechos citados da reportagem original foram tratados com a devida referência à fonte (EDMONDS, 2025).
Fonte: Business Insider. Reportagem de [email protected] (Lauren Edmonds). Former OpenAI researcher says a $10,000 monthly UBI will be ‘feasible’ with AI-enabled growth. 2025-08-23T15:57:15Z. Disponível em: https://www.businessinsider.com/ex-openai-miles-brundage-ubi-ai-jobs-market-2025-8. Acesso em: 2025-08-23T15:57:15Z.
