Introdução
A recente iniciativa do presidente Donald Trump, descrita publicamente como uma medida “ensuring a national policy framework for artificial intelligence”, reacendeu o debate sobre a competência regulatória entre governo federal e estados nos Estados Unidos, bem como sobre o desenho de políticas públicas para inteligência artificial (IA) (REASON, 2025). Ainda que a ordem executiva admita que não cria um arcabouço regulatório nacional completo, sua intenção declarada de padronizar diretrizes e potencialmente anular normas estaduais elevou tensões políticas, jurídicas e técnicas. Este artigo analisa, de forma crítica e detalhada, as implicações dessa iniciativa para regulamentação de IA, ordenamento constitucional, segurança tecnológica, ética em IA e competitividade internacional.
Contexto: Regulamentação de IA nos EUA e o Federalismo
A regulamentação de tecnologias emergentes nos EUA historicamente oscila entre iniciativas federais e ações estaduais e locais. Estados têm promovido regras específicas em áreas como proteção de dados, uso de reconhecimento facial e requisitos de transparência para algoritmos públicos. A existência de múltiplos regimes regulatórios gerou um mosaico de obrigações para empresas e agências, levando a chamadas por maior uniformidade para reduzir custos de conformidade e eliminar incertezas regulatórias. Por outro lado, a diversidade normativa também funciona como terreno de experimentação e pode proteger consumidores em jurisdições mais rigorosas.
A ordem executiva anunciada por Trump — cuja linguagem afirma a intenção de “ensuring a national policy framework for artificial intelligence” — surge nesse contexto. Apesar de reconhecer sua limitação em constituir um regulamento federal completo, a ordem sinaliza uma vontade clara de estabelecer parâmetros nacionais e, na prática, de buscar mecanismos para impedir que estados adotem padrões considerados contraditórios com a política federal (REASON, 2025).
Principais Elementos da Ordem Executiva
Segundo a reportagem que motivou esta análise, a ordem executiva de Trump possui três aspectos centrais:
– Declaração de intenção de harmonizar política nacional sobre IA, visando uma abordagem uniforme que favoreça inovação e segurança.
– Reconhecimento explícito de que o texto não constitui, por si só, um arcabouço regulatório nacional completo, mas estabelece diretrizes e prioridades administrativas.
– Sinalização de medidas que podem enfraquecer ou limitar a autoridade de normas estaduais conflituosas, seja por meios administrativos ou interpretativos (REASON, 2025).
A linguagem da ordem executiva, portanto, combina objetivos estratégicos (competitividade tecnológica, segurança e inovação) com mecanismos que podem promover preempção do direito estadual de legislar sobre matérias correlatas.
Aspectos Jurídicos: Pré-emção, Constitucionalidade e Limites
A tensão entre normas federais e estaduais remete ao princípio constitucional do federalismo. Nos EUA, a doutrina da preempção estabelece que leis federais podem, em determinados casos, sobrepor-se a normas estaduais. Existem duas formas de preempção: expressa, quando uma lei federal explicitamente declara a intenção de preemptar normas estaduais; e implícita, quando a incompatibilidade entre os regimes ou a ocupação total do campo regulatório pelo Congresso torna a legislação estadual inviável.
Uma ordem executiva, por sua natureza administrativa, não tem o mesmo poder de preempção que uma lei aprovada pelo Congresso. Portanto, eventuais tentativas de usar uma ordem executiva para anular regulamentações estaduais enfrentarão limites jurídicos relevantes, especialmente se confrontarem prerrogativas expressas dos estados ou direitos protegidos por leis federais específicas. Além disso, medidas que impliquem invasão de competências estaduais podem ser contestadas judicialmente por meio de ações constitucionais, suscitando debates sobre interpretação dos poderes executivos e limites administrativos (REASON, 2025).
Ainda que a ordem não estabeleça regulamentação detalhada, sua aplicação prática pode envolver agências federais que emitam normas ou orientações administrativas. Nesses casos, a legalidade dependerá da autoridade estatutária das agências e da observância do devido processo regulamentar. A eventual tentativa de bloquear diretamente normas estaduais pode provocar contestações perante tribunais federais, demandando análise casuística sobre a extensão do poder executivo em relação a competências estaduais.
Reações do Mercado, da Indústria e de Governos Estaduais
A manifestação pública de uma ordem executiva com este teor tende a provocar reações diversas:
– Setor privado: empresas de tecnologia geralmente valorizam previsibilidade regulatória. Uma política federal unificada pode reduzir custos de conformidade e facilitar escalabilidade de produtos e serviços de IA. Ao mesmo tempo, empresas que possuem compromissos de responsabilidade social ou que operam em jurisdições com altos padrões regulatórios podem ver riscos reputacionais caso a política federal flexibilize padrões de proteção e ética (REASON, 2025).
– Governos estaduais: Estados com legislação proativa em IA ou proteção de dados poderão reagir com medidas legais para preservar suas normas, especialmente em áreas onde alegam competência tradicional, como proteção ao consumidor, segurança pública e privacidade. Estados também podem advogar por diálogo federal-estadual para evitar conflitos.
– Sociedade civil e especialistas: organizações de direitos digitais, entidades de defesa do consumidor e acadêmicos de ética em tecnologia podem criticar tentativas de sobreposição que diminuam salvaguardas em prol de competitividade econômica, demandando transparência, avaliação de impacto e mecanismos democráticos participativos (REASON, 2025).
Impactos na Segurança, Ética e Governança de IA
Uma política nacional sobre IA que priorize rapidez de adoção e competitividade pode, sem salvaguardas adequadas, comprometer aspectos essenciais:
– Segurança: normas insuficientes sobre testes, auditoria e certificação de sistemas de IA podem aumentar riscos de falhas, ataques adversariais e uso malicioso da tecnologia. Uma abordagem federal precisa incluir requisitos mínimos de segurança cibernética e protocolos de resposta a incidentes.
– Ética: decisões automatizadas em saúde, justiça, crédito e emprego exigem mecanismos de transparência, explicabilidade e remediação. A uniformização regulatória não pode significar retrocesso em padrões éticos; pelo contrário, deve incorporar princípios de justiça, não discriminação e responsabilização.
– Governança: políticas públicas eficazes combinam padrões técnicos, fiscalização, participação pública e atualização normativa contínua. A imposição de uma política federal sem processos deliberativos robustos pode resultar em normas rígidas ou desajustadas tecnicamente.
Portanto, equilíbrio entre harmonização regulatória e manutenção de altos padrões de proteção é crucial para mitigar riscos sistêmicos e preservar confiança pública nas tecnologias de IA.
Implicações para Competitividade Internacional
A definição de um quadro nacional de IA tem efeitos externos: normas internas influenciam padrões globais, cadeias de fornecimento e acordos comerciais. Estados Unidos pretendem frequentemente moldar regras técnicas internacionais; uma política federal coesa pode fortalecer a posição do país frente a competidores estratégicos, sobretudo se aliar incentivos à pesquisa, financiamento público para P&D e regimes regulatórios que estimulem adoção responsável.
Por outro lado, posturas que priorizem flexibilização regulatória em detrimento de proteção podem gerar atritos com parceiros comerciais que adotem normas mais rígidas, como a União Europeia, impactando interoperabilidade e acesso a mercados. O desenho da política nacional de IA deve, portanto, considerar diplomacia tecnológica e alinhamentos regulatórios multilaterais.
Análise Crítica: Vantagens e Riscos da Intervenção Federal
Vantagens potenciais:
– Redução de fragmentação normativa, simplificando conformidade e promovendo escala para inovações;
– Coordenação estratégica para investimento em P&D e infraestrutura crítica;
– Capacidade de instituir padrões mínimos de segurança e interoperabilidade.
Riscos e desvantagens:
– Possibilidade de enfraquecimento de proteções locais mais rigorosas;
– Risco de captura regulatória por interesses privados se processos decisórios não forem transparentes;
– Fragilização da experimentação normativa que estados podem oferecer como laboratórios de políticas.
A ordem executiva, se bem articulada e implementada com participação amplificada de stakeholders, pode mitigar alguns riscos. Entretanto, a utilização de instrumentos puramente administrativos para sobrepor normas estaduais sem debate legislativo aumenta a probabilidade de resistência institucional e judicial.
Recomendações para Policymakers e Reguladores
Para que uma política nacional de IA seja eficaz, legítima e sustentável, recomenda-se:
– Estabelecer processos participativos: consultas públicas, painéis de especialistas independentes e testes pilotos estaduais.
– Definir princípios mínimos obrigatórios: segurança, transparência, não discriminação e responsabilização.
– Preservar espaço de inovação local: manter mecanismo para estados experimentarem normas que posteriormente possam ser adotadas federalmente quando comprovarem eficácia.
– Criar mecanismos de supervisão técnica: entidades com capacidade para auditar algoritmos críticos e emitir guias técnicos atualizados.
– Articular esforços internacionais: buscar convergência regulatória com parceiros para facilitar comércio e cooperação em segurança cibernética.
– Garantir interoperabilidade normativa: padrões técnicos que permitam conformidade e certificação recíproca entre jurisdições.
Essas medidas ajudam a conciliar unidade regulatória com proteção de direitos e promoção de inovação responsável.
Perspectivas Jurídicas e Cíveis: Litígios e Precedentes Potenciais
Dada a complexidade constitucional, é previsível que medidas federais que busquem anular regulamentações estaduais motivem litígios. Tribunais poderão avaliar, entre outros pontos, se a ação federal:
– Extrapola a autoridade executiva sem apoio legislativo;
– Viola princípios de distribuição de competência entre União e estados;
– Afeta direitos fundamentais protegidos por leis ou constituições estaduais e federais.
Precedentes judiciais em áreas análogas (regulamentação ambiental, saúde pública, comércio interestadual) indicarão o grau de deferência que cortes darão a decisões executivas nesta matéria.
Conclusão
A ordem executiva anunciada por Donald Trump, embora apresentada como medida para “ensuring a national policy framework for artificial intelligence”, apresenta ambivalência entre objetivos de uniformização e limites práticos e jurídicos. A busca por uma política nacional coerente é legítima diante da complexidade e velocidade da transformação tecnológica; contudo, a forma, os instrumentos e as salvaguardas adotados determinarão se essa iniciativa resultará em um avanço equilibrado ou em fonte de conflitos institucionais e riscos regulatórios.
Para especialistas, reguladores e tomadores de decisão, o desafio é construir uma política que una segurança, ética e competitividade, preservando o papel dos estados como laboratórios normativos e garantindo mecanismos de supervisão técnica e democraticamente legítimos. A ausência de um arcabouço legislativo federal robusto limita a eficácia de ordens executivas como instrumento de reforma sistêmica, tornando fundamental o diálogo entre Executivo, Legislativo, Judiciário, setor privado e sociedade civil (REASON, 2025).
Referências citadas no texto:
(REASON, 2025)
– REASON. Donald Trump Tries To Override State AI Regulations via Executive Order. Biztoc.com, 12 dez. 2025. Disponível em: https://biztoc.com/x/3ed821478a1d1158. Acesso em: 12 dez. 2025.
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Fonte: Biztoc.com. Reportagem de reason.com. Donald Trump Tries To Override State AI Regulations via Executive Order. 2025-12-12T22:43:27Z. Disponível em: https://biztoc.com/x/3ed821478a1d1158. Acesso em: 2025-12-12T22:43:27Z.






